terça-feira, fevereiro 14, 2006

 

À flor da pele

Roberto passou os dedos pelos cabelos grisalhos enquanto saia da fábrica com outras centenas de operários. Já não tinha a mesma vitalidade de antes e depois de quinze anos trabalhando como operador de máquinas gostaria de parar. Quem sabe montar seu próprio negócio ou, em último caso, mudar para outra empresa.
Tinha tido uma insônia brava nas últimas semanas, mas nada que pudesse ser atribuído ao trabalho.Nem mesmo aos turnos malucos que atrapalhavam o biorritmo dos trabalhadores.Muitos companheiros não agüentavam o rojão e logo pediam as contas ou entravam em licença médica.
Mas Roberto sabia que sua falta de sono tinha outra motivação. Seu problema estava circunscrito a sua mulher Eloísa e uma das filhas, Clara. Sua mulher nascera em Queimados, na periferia do Rio de Janeiro e era cheia de idéias suburbanas. Adorava férias na praia, exibindo-se seminua em biquínis que dizia ser a última moda. As filhas herdaram este jeito meio doidivanas da mãe. Eram cinco garotas maravilhosas. Amava todas igualmente, mas a mais velha, Clara, era especial para ele.
Seu mundo caiu quando ouviu Clara afirmar, no meio do jantar, em alto e bom som que iria colocar um piercing no umbigo e fazer uma tatuagem na linha da cintura.
-Nunca!, gritou Roberto apavorado, pensando na mutilação que sofreria sua primogênita.
-Todas minhas colegas já fizeram isto!, afirmou aos brados Clara.
Roberto olhou para Eloísa, sua mulher, procurando apoio para seu posicionamento, mas ela parecia alheia a discussão.As outras garotas terminaram a refeição e preferiram esconder-se nos quartos já que não tinham participação direta naquele problema. O homem sentiu cada vez mais lhe faltar chão. Clara falava de forma torrencial sem dar-lhe tempo de imprimir a marca de sua autoridade.
Depois de ouvi-la viu que ela se levantava e saia da sala, dizendo que faria o planejara. Roberto olhou para o rosto de Eloísa e teve vontade de dar-lhe uns tabefes.Com um ridículo copo de suco na mão que tremia, ficou pensando o que era pior, piercings ou tatuagens. Quando era adolescente ouvia dizer que a tatuagem impedia que muitas pessoas passassem pelo exame médico admissional das grandes empresas. E que tal comportamento era próprio de prisioneiros e marinheiros. Reconhecia que atualmente via mulheres tatuadas por todos os cantos, no trabalho, nas ruas. Muitas mulheres tornavam-se até mesmo mais sensuais e quando passava por elas admirava aqueles desenhos localizados nos locais mais inusitados do corpo humano.
Sua maior lembrança, no entanto era de uma mulher bem mais velha do que ele, uma morena grandalhona, que andava numa camionete velha e que ele encontrara no antigo Posto Maurício.Ela tinha dentes de ouro, seios enormes e já naquela época carregava a suspeita de ter assassinado o amante, um turco dono de uma loja de tecidos.Foram para uma pensãozinha de terceira categoria próxima da Rodoviária e quando deitaram na cama e ela tirou a calcinha viu que tinha um coração flechado, tatuado na virilha. Impressionado com aquilo teve uma péssima performance. Nunca mais quis vê-la e acabou sabendo que ela também morrera de forma misteriosa.
“E se Clara se tatuasse primeiro na cintura e acabasse chegando a regiões mais intímas?”, pensava desesperado.
Dia seguinte foi a Biblioteca Pública e resolveu ler tudo que houvesse a respeito da tal tatoo... “O fato de tatuar o corpo pode significar o desejo de traduzir alguma coisa que a pessoa não sabe expressar em palavras, um desejo oculto”, leu o pobre e sofredor Roberto.
Foi para casa e deu de cara com a mulher Eloísa e a filha Clara. Ela tinha no umbigo um pequeno piercing. Levantou sua blusa top e viu uma borboleta tatuada em sua costa e até a achou bonita.Pensava o que ia dizer quando Eloísa chegou perto e ele viu um pequeno beija-flor tatuado acima de um dos seus fartos seios.
Saiu de casa batendo a porta, dirigiu-se em disparada ao botequim da esquina, tomou talagadas da branquinha e foi em direção à rua Chagas Dória.
Ao voltar trazia tatuada no peito esquerdo uma espada sarraceno...

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